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Adaptações à dinâmica do tráfico de escravos e
questões étnicas e comunitárias em São Francisco do Conde, BA (1811-1854)
Carlos Alberto Medeiros Lima
(UFPR / CNPq)
Curitiba,
2017
Resumo: Neste artigo são abordados aspectos
da dinâmica do tráfico de escravos e da posse de cativos, das mudanças na
produção açucareira, da composição étnica da sociedade local, da dinâmica da
mestiçagem e da família escrava em São Francisco do Conde, Bahia, durante a
primeira metade do século XIX. Os registros de óbito são as principais fontes
de informação.
Palavras chave: escravidão – tráfico de
escravos – Bahia, século XIX – mestiçagem – família escrava – lavoura
canavieira
Adaptations to the dynamics of the slave trade and
ethnic and communitarian issues at São Francisco do Conde, Bahia (1811-1854)
Abstract: The article deals with aspects
of the dynamics of the arrival of Africans, of patterns of slaveholding, of
changes in sugar production, of the ethnic composition of local society, of the
dynamics of miscegenation, and of slave family at São Francisco do Conde,
Bahia, during the first half of the nineteenth century. Burial records are the
main sources.
Keywords: slavey – slave trade – Bahia,
XIXth century – miscegenation – slave family – sugar production
Adaptaciones a la dinámica del tráfico de esclavos y
cuestiones étnicas y comunitarias en São Francisco do Conde, Bahia (1811-1854)
Resumen: En este artículo se
examinan aspectos de la dinámica de las llegadas de africanos, de la
distribución de la propiedad de esclavos, de las mudanzas en los procesos
productivos del azúcar, de la composición étnica de la sociedad, de la dinámica
del mestizaje y de la familia esclava en São Francisco do Conde, Bahia, a lo
largo de la primera mitad del siglo XIX. Registros de defunciones constituyen
las principales fuentes de información.
Palabras clave:
esclavitud – tráfico de esclavos – Bahia, siglo XIX – mestizaje – familia
esclava – producción azucarera
Introdução
Neste artigo abordam-se os problemas
vinculados ao impacto da ilegalidade do tráfico de escravos africanos e a
aspectos das sociabilidades escravas durante a primeira metade do século XIX, em
duas paróquias da vila de São Francisco do Conde, no norte do Recôncavo Baiano.
Trata-se das de São Gonçalo e Nossa Senhora do Monte do Recôncavo –
provavelmente as duas mais importantes da vila no tocante a concentrar engenhos
e elites, conforme informação produzida durante o século XVIII (PEDREIRA, 1984,
p. 18). Uma medida da importância dessas duas freguesias pode ser buscada no Recenseamento
de 1872: São Francisco continha, então, mais de quarenta mil pessoas vivendo
fora da escravidão, abarcando 0,4% de toda a população brasileira.[1]
O movimento dos desembarques de
africanos é bem conhecido a partir dos trabalhos de David Eltis e equipe. [2]
Ele mostra, a partir de 1801, a chegada do auge da importação de africanos no
Brasil. Na Bahia, desse ano até 1810, 102 mil escravos. De 1811 até 1820, mais
de 115 mil, e de 1821 a 1830, quase 98 mil, em virtude, ali, dos distúrbios da
Independência, embora no país como um todo este fosse o auge histórico. A
primeira proibição teve efeitos, baixando o total de desembarcados para menos
de 35 mil em 1831-1840, mas houve retomada, embora pouco sustentada, com 65 mil
em 1841-1850. A isso se seguiu a supressão efetiva do comércio de africanos.
Por si sós, essas estimativas fazem
referência à persistência das importações de africanos, mas também ao impacto
efetivo da proibição sobre elas, demandando pesquisas para por um sinal de
expansão ou crise nesses movimentos. Este trabalho faz parte de um esforço mais
amplo para indicar que muitas das mudanças no cativeiro normalmente associadas
à segunda metade do século XIX podem ter começado a ocorrer já antes disso. Isso
se teria exprimido em alterações nos preços de escravos, na concentração de sua
posse e na decadência da politicamente fundamental camada de pequenos
proprietários de cativos. Tudo isso ganharia ímpeto a partir da proibição
efetiva do tráfico de 1850, mas é importante avaliar os primeiros momentos
desses processos, inclusive investigando seu impacto nas sociabilidades, pois,
se as grandes mudanças posteriores a 1850 ocorreram em meio a uma relativa
solidificação institucional da monarquia brasileira, as alterações menos
dramáticas do intervalo 1830-1850 se deram, inversamente, em época de aguda
instabilidade política. A possível concentração da posse de escravos, ainda
antes da proibição definitiva de 1850, deve ter introduzido já nessa época
fatores de crise nos processos de sustentação política do cativeiro, embora não
tenham tido o mesmo alcance que as mudanças causadas pelo fim definitivo do
comércio de almas.
Paralelamente, e por razões
diferentes, os negócios do açúcar receberam efeitos muito negativos da recessão
atlântica do segundo quarto do século e, ao redor de 1840, da competição cubana.
Isso cria interesse nos efeitos das transformações causadas pelo mercado de
escravos em um ambiente marcada por esses destinos do produto.
Além disso, a vida dos escravos foi
impactada por uma outra modificação na história do açúcar baiano. O século XIX
inaugurou a expansão, nos antigos engenhos do local e em muitas unidades novas
montadas exatamente no período, das formas caribenhas, em oposição aos
mecanismos produtivos tradicionais na região, conhecendo-se a brutalidade e o
ritmo bem mais alucinante da produção açucareira das Antilhas, em confronto com
o “negócio nobre” da Bahia (SCHWARTZ, 1988, p. 77ss).
É
importante por lado a lado discussões sobre o tráfico ilegal e sobre as
sociabilidades escravas, abordadas estas por intermédio de informações acerca
da vida familiar. Isso se deve a ter-se tratado de época de grande
instabilidade, e não só no tocante ao comércio de africanos. Havia as questões
propriamente baianas, de grande conturbação política ligada à escravidão (REIS, 1992, p. 107).
Havia também questões políticas articuladas à Independência e à situação
pós-colonial na Bahia (REIS; SILVA, 1989, cap. 5; SOUZA, 1987; MORTON, 1975, p. 250).
Intervinham, mais amplamente, os dilemas pós-coloniais do país como um todo,
expressos especialmente nas rebeliões regenciais. O problema do acesso à terra também
passara a ser fonte de conturbação, com a interrupção da concessão de sesmarias
em 1822 (SMITH, 1990, p. 304; MOTTA, 1998), o que suprimiu boa parte da
arbitragem estatal quanto à propriedade, e isso em uma época durante a qual a
população livre estava provavelmente passando a crescer mais consistentemente,
além do fato de se terem suprimido amarras coloniais para a expansão na direção
de fronteiras agrárias. Se não no Recôncavo, em virtude da antiguidade de sua
ocupação, pelo menos no império em seu conjunto e nas instituições vigentes (inclusive
na Bahia), esse fator de difusão da violência pode ter tido um papel importante.
Essa espécie de tempestade perfeita pós-colonial torna decisivo o estudo das
sociabilidades no período.
Restrições à abertura de novos
engenhos vinham sendo suprimidas desde a Independência,[3] e Schwartz
chamou a atenção para a proliferação de engenhos novos na Bahia, antes mesmo da
emancipação política. Seu número cresceu quase constantemente até 1822, apesar
de alguma tendência à redução da escala dessas unidades novas (SCHWARTZ, 1988,
p. 150, 172, 228, 344-345). Isso teve relação com o expansionismo do período,
mas também com o fato de que um engenho dessa época não se confundia mais com
as enormes unidades coloniais produtoras de açúcar branco. Exportar açúcar, na
época, tornara-se atividade mais caribenha que baiana, no sentido de que
unidades menores produzindo açúcar bruto passavam a ser mais adequadas que os
aristocráticos e gigantescos engenhos produtores de menor quantidade de açúcar
branco (BARICKMAN, 2003, p. 78-79).
Ressalte-se que o tom de modernização impresso a esse relato parcial das
mudanças na atividade canavieira baiana não significa identificar ali
transformações como as que se operavam mais ou menos na mesma época em Cuba,
com a proliferação de seus enormes engenhos mecanizados.[4]
Tudo caminhava para parecer-se mais com o Caribe inglês ou francês do século
XVIII que com a Cuba do oitocentos. Assim, apareciam em 1838 anúncios como o publicado
por Antonio Joaquim Calmon Villas-boas, que vendia “a propriedade de engenho de
fazer assucar, que possue, livre e desembargada”, em Santo Amaro. A unidade
fora “edificada a dous annos”, em “terreno próprio, todo de massapé de boa
qualidade. Vendia “com alguns escravos e bois, ou mesmo sem elles”.[5] É
possível que se tratasse de uma relação inteiramente nova, para os baianos, com
a posse de engenhos. É difícil imaginar gente do “negócio nobre” colocando
anúncios de jornal dessa ligeireza, apesar de Schwartz às vezes enfatizar que a
rotatividade da propriedade de engenhos era, mesmo na Bahia colonial, maior do
que já se imaginou (SCHWARTZ, 2014, p. 359). Além disso, o anúncio sugere que
esse novo engenho devia ser pequeno em comparação com as enormes unidades
coloniais. Manter esses deslocamentos em mente ajudará a entender os
desempenhos bem diferentes de São Gonçalo e de Nossa Senhora do Monte.
Como em modelos usados por historiadores
nos últimos tempos (TOMICH, 2011, p. 83; MARQUESE, 2008), unidades novas
formavam-se velozmente e voltavam-se para a produção de matérias primas.[6] Mas
alguns elementos derivados do fato de se tratar de área de antiga ocupação, na
verdade quinhentista, retinham importância. A freguesia onde o cativeiro mais
se aprofundou durante o período estudado, Nossa Senhora do Monte, não constituía,
então, uma área nova, até o momento deixada marginalizada. A freguesia fora
fundada em 1608, e engenhos locais já eram mencionados por Gabriel Soares de
Sousa, no final do século XVI (PEDREIRA, 1984, p. 27). Assim, mais que a
expansão da fronteira, o que se entrevê é uma onda de expansão disruptiva
varrendo terras antigas. O modelo faz referência a formas mais pesadas de
gestão das escravarias (TOMICH, 2011, p. 114), o que de certa forma encontrará
paralelos nos resultados deste estudo. Mas, além de terem sido comparativamente
duras as condições dos escravos desde muito antes, é inegável que a concepção
de que estaria em construção uma nova estrutura não combina com um argumento
central deste trabalho: gestava-se um fator de crise na escravidão; a
disparidade de condições minaria as bases de sustentação política do cativeiro.
O fato de essa onda ter varrido
terras antigas demanda reflexão sobre os aspectos processuais. Desde que
começou a levar em conta a tessitura de laços comunitários entre os escravos, a
historiografia da escravidão passou a considerar a relevância da história
específica das comunidades e regiões, problematizando os contextos. Gutman
chamou a atenção para a temporalidade intrínseca à convivência dos cativos no
interior de cada uma das escravarias, criando uma espécie de ciclo que levava a
laços mais intensos na maturidade do plantel e à desarticulação no instante da
morte dos proprietários (GUTMAN, 1976, p. 138).
Percepção diversa deriva das obras de Craton e Gutman a respeito do Caribe
Inglês. O processo, para eles, passava por um momento inicial da região em que
a alta proporção de homens entre os africanos tornava impossíveis as famílias
extensas, impondo uma quase conjugalidade europeia. O relativo envelhecimento
da região enquanto área produtiva reduzia a parcela africana da população
cativa, além de diminuir o ritmo de crescimento econômico. Isso minimizava os
aportes de africanos, criando, assim, condições para uma maior parcela feminina
na população e para o aprofundamento genealógico dos laços, abrindo caminho
para a família poligínica (CRATON, 1979; HIGMAN, 1975). Diferentemente do tempo
da escravaria de Gutman, trata-se nesse caso do tempo da região. Mais
recentemente, têm impactado as percepções processuais as análises de Berlin,
para quem o acento deve ser posto no processo de consolidação da classe
senhorial no terreno da atividade principal. O início do povoamento implicava a
presença de poucos escravos, boa parte dos quais “crioulos atlânticos”, com
muita interação com os pobres livres dos arredores. A acumulação obtida pela
classe senhorial permitiria, com o tempo, nova “geração”, marcada pela
aquisição maciça de africanos recém-saídos de suas sociedades de origem. Trancafiados
em senzalas, ficavam aprisionados em relações (distantes) com o poder senhorial,
que no processo se definia. Eram afastados das relações de sociabilidade com os
livres pobres e, em virtude da nova forma de existência, ao mesmo tempo grupal
e isolada, definiam-se ao redor da “África”, mas também da “raça”.
Posteriormente, chegava o momento dos deslocamentos para as fronteiras agrárias
do século XIX, conducente a separações e mais migrações forçadas (BERLIN, 2006).
Além de modelos que enfatizam
fenômenos globais, como o de Tomich, e daqueles de matriz processual, é preciso
deixar a análise dos dados ser bafejada por uma percepção, também crítica, de
que se estaria diante das chamadas sociedades do açúcar.[7]
Essa concepção chama a atenção para a rigidez da atividade canavieira,
associada às economias de escala, à brutalidade dos processos de trabalho, à
alta insalubridade e às dificuldades de financiamento e relacionamento com o
capital mercantil.
O modelo de Tomich auxiliará a
mensurar a relevância de uma nova expansão no fim do século XVIII e início do
seguinte, mas terá que ser calibrado pela percepção de se terem instalado
fatores de crise. O processual dirige a atenção para o acúmulo de laços e de
oportunidades para a criação de novos laços e grupos sociais, mas será
necessário levar em conta que efeitos importantes dos processos cumulativos
foram simplesmente reprimidos pelas condições locais. A especificidade
canavieira ajuda a compreender que a expansão estudada se deu, em grande
medida, “à velha moda”, mas o final do artigo contém avaliações no sentido de
terem sido muito diferentes as características de outras áreas de expansão da
cana no Brasil da mesma época, calibrando a incidência das explicações pela via
da lógica do próprio açúcar.
A
principal fonte de informação é constituída pelos registros de óbitos, impondo
realizar uma breve reflexão metodológica sobre o uso desse tipo de assento na
pesquisa. É óbvio constituir um problema o fato de se buscar entender a vida
social observando informações sobre quem estava deixando de existir, pois o
tamanho de sua presença nos óbitos podia apontar mais para o desaparecimento de
um grupo que para seu peso específico. No entanto, também é evidente que essas
pessoas estavam vivas até o momento anterior, compondo a população. A questão é
que, se for ampliado o intervalo observado, os registros de óbito acabam
constituindo testemunho a respeito da composição da população em termos de
estatuto social, condição jurídica, etnicidade e gênero, mostrando tendências
dessa composição, embora nunca valores absolutos. É condição para aproveitar-se
disso considerar que o ritmo das mortes variava segundo os grupos sociais,
etários e étnicos, distorcendo em alguma medida a imagem obtida sobre a
composição. À consideração das distorções causadas pela mortalidade diferencial
deve ser acrescentada a expectativa de que também incidisse sub-registro
diferencial, ao longo de linhas semelhantes, mas com sentido inverso. Essas
distorções só não serão graves se forem levadas em conta na interpretação dos
dados.
As condições novas instauradas na
região ajudam a compreender aquilo que se visualiza ao se compararem indícios
relativos à posse de escravos nas duas paróquias.
A
estagnação de São Gonçalo e o avanço em N. S. do Monte
Alguns aspectos dos dilemas do
enfrentamento pelos escravistas das circunstâncias para eles já adversas da
época da primeira ilegalidade do tráfico africano ficam evidenciados através de
aproximações ao tamanho das escravarias e à dinâmica da posse de escravos nas
duas paróquias. Isso pode ser feito por intermédio dos próprios óbitos, desde
que nos contentemos com uma aproximação que, além de não permitir nenhuma
achega ao tamanho efetivo dos plantéis, não faculta definir com precisão a
participação dos senhores de escravos na população.
Observa-se a quantidade de senhores
que sepultavam escravos nas freguesias, a cada ano, assim como a quantidade
média de escravos sepultados anualmente pelos mesmos. A evolução do número
médio de escravos enterrados por proprietário indica se a robustez das
escravarias locais estava aumentando ou diminuindo. A evolução do número de
proprietários que a cada ano sepultava escravos indica se a posse de escravos
estava ou não se concentrando socialmente. Só interessam as comparações entre
os volumes das duas freguesias e o movimento dos dados dentro de cada uma
delas. Não há modo de arrancar dos óbitos indicadores que permitam entrever fenômenos
compreendidos de forma absoluta. O número anual de senhores que sepultaram
escravos a cada ano está plotado como média móvel de três anos (gráficos 1 e
2).
Durante
o auge do tráfico de escravos africanos para o Brasil – os anos 1820 –, a
quantidade de senhores a aparecer nos registros de óbitos de São Gonçalo
começou a decrescer. A média de escravos sepultados ao ano por senhor – nosso
indicador acerca do tamanho das escravarias – também passou a cair. Mas como a
média anual reduzia-se de modo muito menos expressivo que o verificado em
relação à quantidade de senhores, esse desempenho só pôde ter sido obtido
através da concentração da posse de escravos. O trajeto na época dos
contrabandos teve um sinal um tanto negativo e, acrescente-se, esse sinal se
fez acompanhar de um robustecimento da desigualdade entre os proprietários, ou
entre os homens livres de modo geral. Já em Nossa Senhora do Monte, como se
passa a ver, o sinal foi positivo para os escravistas.
Segundo o gráfico 2, além de o
número médio de óbitos por senhor ter ultrapassado o de São Gonçalo, é notável
que ele tenha aproximadamente dobrado ao longo dos cerca de trinta anos
pesquisados. Assim, apareceu em N. S. do Monte uma profusão impressionante de
barões. Anotaram-se mais de 140 falecimentos de escravos do Barão de
Paraguassu, mais de 40 do Barão de São Francisco e mais de 180 do Barão do Rio
de Contas, além dos mais de 170 óbitos de escravos de Francisco Vicente Viana,
filho do Barão do Rio de Contas e depois Barão de Viana. Foi nessa freguesia
que viveu o final de sua vida o ilustrado Luís Antônio de Oliveira Mendes, pois
faleceu, com prováveis noventa anos de idade, segundo o religioso que lavrou o
registro, em 15 de julho de 1838 (Monte do Recôncavo, O., 1845-1852, fl 31).
Gráfico
1
Fontes: Paróquia
da Vila de São Francisco, óbitos, 1810-1849 (doravante, SG-1810-1849); Livro
dos óbitos da freg.a da Villa de S. Francisco, 1849-1877 (doravante,
SG-1849-1877).
Paralelamente,
a quantidade de senhores que aparecia a cada ano nos registros, após ter
aumentado bastante até 1837 ou 1838, estabilizou-se a partir de então. Em
outras palavras, o indicador do tamanho médio das escravarias cresceu quase
sempre, se descontarmos os picos (certamente traficantes) de 1837 e 1842; mas a
quantidade de senhores parou de aumentar por volta da metade do período. Assim,
especialmente no final do intervalo observado, os plantéis de N. S. do Monte
aumentaram de tamanho enquanto diminuíam de número. A desigualdade da posse de
escravos e a distância frente aos livres não escravistas cresceu também aí.
A disparidade de patrimônios
escravistas em São Francisco também pode ser observada comparando as duas
freguesias. Em uma delas houve estagnação; na outra, crescimento, e essa maior
distância social entre os senhores das duas constitui outra forma de perceber o
aumento da desigualdade entre os escravistas. A primeira proibição do tráfico
teve importância no sentido de gerar fatores de crise, e essa problematização
de fatores de unidade da classe senhorial prometia mais crise no futuro.
Gráfico
2
Fontes: Monte do
Recôncavo, O., 1821-1852 (daqui para a frente, MO-1821-1852); Monte do
Recôncavo, O., 1852-1862 (doravante, MO-1852-1862).
É crucial notar que, a pesar do
crescimento impressionante de sua relação com a escravidão, os indicadores
quanto a N. S. do Monte frearam pouco antes de 1840, o que impõe refletir sobre
o mercado de açúcar. Foi ao redor de 1840 que a ascensão cubana, em meio à
recessão atlântica, mostrou todos os seus efeitos.
A
sociedade local
Os registros de óbito das duas
paróquias têm informações singularmente completas sobre os livres e libertos
que nelas faleciam, pois quase invariavelmente atribuíam-lhes uma cor e uma
condição jurídica. Há alguns problemas, no entanto, ao lado do conhecido
sub-registro. Um deles é o de que o significado da palavra “forro” oscilava, às
vezes significando “liberto”, mas às vezes fazendo referência aos bem mais
numerosos descendentes livres de escravos. A definição do status conjugal dos
livres adultos e da legitimidade/ilegitimidade da filiação das crianças livres
também aparecem com regularidade. Quanto aos escravos, idade e vínculos
familiares eram referidos com menos frequência nos registros. Era, no entanto,
comparativamente muito grande a propensão a comunicar procedências.
Essas informações básicas permitem
avaliar alguns aspectos importantes da escravidão em São Francisco do Conde
(tabela 1). A participação escrava na população é um deles. Outro é constituído
pela relação com o tráfico de escravos e com as grandes áreas de embarque de
africanos. Outro ainda se liga à maturação de regiões escravistas. A
antiguidade do povoamento escravista e a centralidade do cativeiro se exprimiam
geralmente na importância da parcela crioula do contingente cativo, na
proporção de “pardos” e “cabras” entre os escravos e na presença de uma robusta
camada de descendentes livres de escravos. Os assentos de sepultamento permitem
verificar isso, desde que se levem em conta os dois fenômenos que, com sentidos
inversos, deturpam os dados: a mortalidade diferencial conforme os grupos
sociais, que inflaciona a quantidade de pobres, negros livres e escravos nos
registros, e o sub-registro também diferencial conforme a posição social, que tem
sentido inverso.
Nessa aproximação aos estratos da
população de cada paróquia, fica evidente a presença majoritária de
descendentes livres ou libertos de escravos. A mortalidade diferencial não
poderia explicar sua preponderância nas fontes. Isso mostra que a antiguidade
do povoamento tinha impacto na estruturação das condições locais. Só ela pode
ter permitido, na ausência de fortes processos de migração de ex-escravos
libertados em outras partes, a lenta acumulação de uma população livre
originária de alforrias. Ressalta-se tal circunstância neste momento porque,
como se verá no correr deste trabalho, a família escrava não dava muitos sinais
de extensão, aprofundamento ou, no mínimo, de reconhecimento, e esses sinais
seriam de se esperar em local tão marcado por uma longa história de maturação.
Isso será abordado adiante.
Tabela 1
Aproximação aos
grupos constitutivos da população de São Gonçalo (1811-1854) e de Nossa Senhora
do Monte (1822-1854) – percentagens do total de óbitos
São Gonçalo,
1811-1854
|
N. S. do
Monte,
1822-1854
|
|
Brancos
|
22,5
|
16,5
|
Total dos
aparentemente
considerados brancos
|
22,5
|
16,5
|
Forros sem
qualificação
|
-
|
0,1
|
Pardos forros
|
10,4
|
2,9
|
Cabras forros
|
2,5
|
1,1
|
Mestiços
forros
|
-
|
0,1
|
Crioulos
forros
|
5,1
|
3,0
|
Pretos forros
|
0,2
|
0,2
|
Africanos
forros
|
3,8
|
0,4
|
Pardos
“libertos”
|
0,1
|
0,5
|
Cabras
“libertos”
|
-
|
0,1
|
Crioulos
“libertos”
|
-
|
1,0
|
Africanos
“libertos”
|
-
|
1,1
|
“Libertos” s/
cor ou proced.
|
-
|
0,1
|
Pardos livres
ou s/ cond.
|
9,3
|
17,8
|
Cabras livres
ou s/ cond.
|
2,2
|
2,9
|
Mestiços
livres ou s/ cond.
|
-
|
0,2
|
Não brancos s/
inf.*
|
6,4
|
0,4
|
Crioulos
livres ou s/ cond.
|
2,0
|
3,0
|
Pretos livres
ou s/ cond.
|
0,1
|
-
|
Total de
libertos e descendentes livres de escravos
|
42,2
|
34,7
|
Escravos
pardos
|
2,8
|
2,3
|
Escravo cabras
|
3,0
|
2,3
|
Escravos
crioulos
|
10,1
|
15,4
|
Escravos s/
qualificação
|
2,8
|
4,4
|
Escravos
pretos
|
0,1
|
1,0
|
Escravos
africanos
|
16,3
|
23,4
|
Total de
escravos
|
35,2
|
48,8
|
Outros**
|
0,1
|
-
|
Total
geral
(n.
absoluto)
|
100
(2920)
|
100
(2697)
|
* Sabe-se pela
filiação que não seriam considerados brancos.
** Duas pessoas
de origem Roma, designadas como “ciganos”.
Fontes: SG-1810-1849;
SG-1849-1877; MO-1821-1852; MO-1852-1862.
Voltando, no entanto, à distribuição
dos livres quanto a sua cor, um número eloquente é o de aparentemente brancos
confrontados com descendentes livres e libertos de escravos. Nas duas freguesias,
essa relação era, nos óbitos, de um possível branco para cada dois do outro
conjunto. Os classificáveis como brancos eram um pouco mais importantes na
população livre de N. S. do Monte, como se viu a de dependência mais crescente
da escravidão (40% dos não escravos, enquanto em São Gonçalo eles eram um terço
do total de livres e libertos).
Quanto aos escravos, sua
participação na população era bem maior em N. S. do Monte. A africanidade era
nesta era ligeiramente maior, alcançando metade, mas o número relativo a São
Gonçalo era muito parecido. A importância dos classificados como pardos ou
cabras era maior na freguesia da vila, chegando a um sexto dos escravos,
enquanto na outra paróquia ela ficava ao redor de um décimo. Os classificados
como crioulos ou deixados sem qualificação eram dois quintos do total em ambas,
com uma vantagem ligeira, provavelmente insignificante, em N. S. do Monte.
A questão dos pardos e cabras entre
os escravos levanta problemas importantes. O amadurecimento da área significava
aumento de sua participação na população nascida no Brasil. Em São Gonçalo, a
razão mestiços/negros no caso dos cativos nascidos no Brasil era de 0,46. Em
Nossa Senhora do Monte, alcançava 0,23. Assim, a população escrava de São
Gonçalo era duas vezes mais propensa a conter mestiços que a outra. Segundo os
dados de escravos inventariados de Parés (2007, p. 66), referentes ao conjunto
da vila de São Francisco, essa razão passou de 0,34 em 1750-1779 para 0,41 em
1780-1800 e para 0,47 em 1801-1820, de modo que São Gonçalo parece ter sido
mais representativo do conjunto de São Francisco que N. S. do Monte. Tudo
caminha na direção de mostrar um contingente cativo, na paróquia da vila, que
ainda retinha os caracteres que a antiguidade lhe tinha imprimido.
Os dados de Parés mostram, além do
mais, o processo de maturação da população escrava, com o crescimento contínuo
da parcela mestiça em seu interior. Mas considerar as condições novas do início
do século XIX impõe acréscimos. Já ficou sugerido em estudos comparativos que,
sem eliminar a cumulatividade da presença de mestiços em populações escravas
locais, a classificação de cada cativo como mestiço (pardo, mulato, cabra) ou
negro era objeto de uma série de manipulações, de critérios arbitrários quanto
aos fenótipos, mas motivados quanto às relações sociais de domínio, exprimindo
uma espécie de ansiedade por estabelecer coesão (LIMA, 2015). Observem-se, na
tabela 2, as razões entre os números de mestiços e negros entre escravos
crioulos conforme o gênero e a idade. Ela tem uma seção específica para uma
questão que só pode ser abordada quanto a São Gonçalo.
Tabela 2
Razão
mestiços/negros entre escravos nascidos no Brasil de acordo com o gênero e a
idade (São Francisco do Conde, 1811-1854)
Crianças
|
Adultos
|
|||
Masculino
|
Feminino
|
Masculino
|
Feminino
|
|
São
Gonçalo, 1811-1854
|
0,41
|
0,53
|
0,43
|
0,44
|
N.
S. do Monte, 1822-1854
|
0,15
|
0,18
|
0,37
|
0,36
|
Evolução da razão mestiços/negros em São
Gonçalo, 1811-1854
|
||||
Crianças
|
Adultos
|
|||
Masculino
|
Feminino
|
Masculino
|
Feminino
|
|
1811-21
|
0,40
|
0,53
|
0,48
|
0,65
|
1822-29
|
0,68
|
1,63
|
0,67
|
0,58
|
1830-39
|
0,43
|
0,41
|
0,50
|
0,56
|
1840-49
|
0,35
|
0,24
|
0,38
|
0,14
|
1850-54
|
0,23
|
0,40
|
0,17
|
0,13
|
Fontes:
SG-1810-1849; SG-1849-1877; MO-1821-1852; MO-1852-1862.
Quanto
a todos os grupos de gênero e idade, percebe-se uma espécie de comemoração
mestiça da Independência (e do auge do tráfico de escravos). A propensão a ver
mestiços cresceu até a década de 1820. Depois decresceu consistentemente. O parafuso
foi apertado quanto à cor a partir de 1830, de modo que a tendência a que
aparecessem mestiços entre os crioulos foi, no início dos anos 1850, quatro
vezes menor que a observada no auge dos anos 1820. Esses movimentos, bruscos
demais, só podem ter sido causados por mudanças nas grades de classificação.
Aparentemente, se estava diante de uma aposta nas crianças mestiças,
especialmente nas meninas mestiças. Quanto mais o tempo passava, tanto mais os
rótulos de mestiçagem eram reservados às crianças. Mas até no caso delas o
impulso pós-1830 foi de redução da importância da atribuição de mestiçagem.
Lembra-se
a possibilidade de que a mestiçagem entre os crioulos tenha decrescido na época
em função de enorme disponibilidade de parceiros endogâmicos negros, devendo-se
isso ao auge do tráfico de escravos. No entanto, não se deve deixar passar o
fato de que a participação de mestiços entre as crianças decresceu exatamente
na paróquia – São Gonçalo – onde a presença africana foi decrescente após 1830.
Assim, o mais provável ter havido mudança não nas estratégias matrimoniais,
mas, antes, nos critérios de classificação, quase certamente como produto da
turbulência política (MATTOS, 1995, p. 84-88; LARA, 2007, p. 131, 272-285).
No
mínimo em Nossa Senhora do Monte, a imagem obtida sobre a composição da população
escrava reitera aquela de uma onda de expansão disruptiva varrendo terras
antigas. Essa imagem fica reiterada ao se observarem os africanos das duas
freguesias.
Africanos
em São Francisco do Conde
Vale a pena buscar uma percepção
mais dinâmica a respeito da presença de africanos entre os escravos das duas
freguesias. Para isso, observa-se no gráfico 3 a participação dos óbitos de africanos
no total de óbitos dos escravos adultos.
A participação africana na população
adulta era muito alta, embora se deva lembrar que os provenientes da África
estivam sobrerrepresentados nos óbitos de adultos, em razão da mortalidade.
Talvez por isso o resultado das duas paróquias aponte para mais africanos entre
os adultos que o observado por Parés (2005, p. 111) para o intervalo 1750-1800,
já que ele contou registros de escravos vivos, chegando a 59,8% dos adultos.
Leve-se em consideração também que os números aqui obtidos não podem ser
aproximados àquilo que os historiadores costumam chamar de taxa de
africanidade, pois esta, além de levar em conta a população viva, confronta o
número de africanos com o total da população, incluindo as crianças.
Gráfico
3
Fontes:
SG-1810-1849; SG-1849-1877; MO-1821-1852; MO-1852-1862.
Além disso, é notável que a presença
relativa dos nascidos no Velho Mundo estivesse se reduzindo em São Gonçalo
enquanto tendia a aumentar ou a manter-se em N. S. do Monte. Isso significa que
o desempenho mais crescente da segunda foi alcançado mediante aquisições de
escravos contrabandeados, denotando compromisso incontornável com o tráfico e
falta de alternativas. No entanto, mesmo a mera preservação da escravidão cada
vez mais desigual observada em São Gonçalo demandou aquisições, apesar de elas
não parecerem ter preservado seu volume.
Também se esperava que as africanas fossem
menos frequentes entre as mulheres que os africanos entre os homens. O gráfico
não mostra isso, então acrescente-se: a participação africana nos óbitos de
homens em São Gonçalo foi de 77%, número que entre as mulheres alcançou 60%. Em
N. S. do Monte as participações foram semelhantes: os africanos foram 80% dos
adultos e as africanas foram 61% das adultas.
Abordam-se agora as grandes áreas de
procedência. Para examiná-lo, é preciso levar em consideração o fato de que, em
certas épocas, os responsáveis pelo registro dos óbitos em São Gonçalo e Nossa
Senhora do Monte assentavam os de africanos sem reportar uma área de origem,
preferindo, para desprazer do analista, escrever “africano”, o clássico “de
nação” ou assemelhados. Assim, é preciso abordar a identificação de grandes
regiões de origem de duas maneiras. Uma delas é selecionar anos inteiros em que
essas expressões dúbias não apareciam. A outra é selecionar, nos outros anos,
meses inteiros durante os quais a expressão também não aparecia (tabela 3).
Reitera-se o conhecido predomínio de
africanos ocidentais, embora, como já foi estudado, a participação de
provenientes da África Central Atlântica tenha tido alguma importância. Assim,
em São Gonçalo, ela alcançava cerca de um terço dos africanos. Em Nossa Senhora
do Monte, com suas escravarias aparentemente bem maiores e com todos aqueles
barões, ficava ao redor de um quinto.
Este
patamar aproximava-se bastante do que Andrade (1988, p. 98-104) estabeleceu
para Salvador. Quanto a São Francisco e o Recôncavo, Parés (2007, p. 66)
estimou, entre os africanos, 42% de centro-ocidentais entre 1750 e 1779, 36%
entre 1781 e 1800, e 27%, entre 1801 e 1820. Reunindo São Francisco e Santo
Amaro, apontou para centro-ocidentais representando pouco menos de um quinto
dos africanos (PARÉS, 2005, p. 107, 111). Essa ordem de grandeza também se
percebe na avaliação feita por Verger (1987, p. 670-675) a partir das partilhas
de São Francisco do Conde (1729-1841): africanos centro-ocidentais
representaram 21% dos africanos registrados, proporção que caiu a partir de
1821. Schwartz (1988, p. 285), estimando desembarques de africanos, estimou
centro-ocidentais como 28% do total em 1803-1807 e 6% dos africanos
desembarcados em 1809 e 1810.
Tabela 3
Procedências
africanas de escravos e libertos na freguesia de São Gonçalo (1811-1854) – % do
total de óbitos de africanos
São Gonçalo
|
N. S. do Monte
|
|||
1811-1812 e 1814
|
1813-1854* - meses selecionados
|
1816-1834**
|
1832-1854 - meses selecionados
|
|
Nagô
|
19,0
|
22,0
|
28,0
|
47,9
|
Tapa
|
1,6
|
1,3
|
3,2
|
1,9
|
Borno
|
-
|
-
|
1,1
|
-
|
Barba
|
-
|
-
|
1,1
|
0,8
|
Ussá
|
6,3
|
7,5
|
14,0
|
7,3
|
Cotocori
|
-
|
-
|
-
|
0,4
|
Calabar
|
-
|
1,3
|
-
|
1,1
|
Camaraí
|
-
|
0,6
|
-
|
-
|
Benim
|
1,6
|
1,9
|
-
|
-
|
Gege
|
31,7
|
25,2
|
12,9
|
13,8
|
Mina
|
3,2
|
3,8
|
14,0
|
5,0
|
África
Ocidental
|
63,4
(40)
|
63,6
(101)
|
74,3
(69)
|
78,2
(204)
|
Angola
|
34,9
|
28,3
|
11,8
|
9,6
|
São Tomé
|
-
|
0,6
|
1,1
|
-
|
Benguela
|
-
|
1,9
|
1,1
|
-
|
Congo
|
-
|
1,9
|
2,2
|
0,8
|
Cabinda
|
-
|
1,9
|
7,5
|
10,3
|
África Central
Atlântica
|
34,9
(22)
|
34,6
(55)
|
23,7
(22)
|
20,7
(54)
|
Moçambique
|
-
|
1,3
|
-
|
1,1
|
África
Oriental
|
-
-
|
1,3
(2)
|
-
-
|
1,1
(3)
|
Ilegível
|
1,7
|
-
|
2,0
|
-
|
Ignora-se
nação
|
-
|
0,5
|
-
|
-
|
Total
|
(63)
100
|
(159)
100
|
(93)
100
|
(261)
100
|
* Exceto 1814.
** Exceto 1832.
Fontes:
SG-1810-1849; SG-1849-1877; MO-1821-1852; MO-1852-1862.
A importância dos africanos
centro-ocidentais em São Gonçalo relacionou-se ao tom menos “sanguíneo” visto acima
quanto à posse de escravos na paróquia da vila, pois em geral eram pagos por
africanos ocidentais preços mais altos que por centro-ocidentais. Ao utilizar
uma amostra ruim quanto a escravos do sexo masculino – e ela é ruim por ser
falha quanto a indicar a idade, as condições físicas e as eventuais
qualificações ocupacionais dos cativos –, obteve-se para 53 africanos
ocidentais inventariados entre 1770 e 1807 em São Francisco do Conde o preço
médio de 88$774, enquanto, para 105 africanos ocidentais, essa avaliação média
ficou em 97$762. Quanto a africanas, as ocidentais eram 13% mais caras que as
procedentes da África Central-Atlântica na mesma época (89$245 e 79$313,
respectivamente). Entre 1808 e 1839, é possível que tenha se ampliado essa
diferença na direção de preços mais elevados para os africanos ocidentais. 280
destes últimos teriam tido preço médio de 50 libras, resultando pouco menos que
40 libras para 43 homens provenientes da África Central Atlântica. A
disparidade entre as médias aponta, portanto, para ocidentais quase 26% mais
caros que angolanos e congoleses. A diferença, no que toca aos preços médios
das mulheres dos dois tipos de procedência, diminuiu um pouco em relação ao
intervalo anterior, pois ficou em 8,8%.[8]
Essa diferença de preços quase certamente se devia à expectativa de maior
longevidade dos ocidentais, confrontada com o resultado cumulativo das
persistentes crises de origem ambiental enfrentadas por angolanos (MILLER,
1989). Uma amostra com anúncios de jornal baianos (fugas e vendas) permite
associar, qualitativa e impressionisticamente, africanos ocidentais a estaturas
mais elevadas. Realiza-se uma aproximação a isso levando em conta um jornal
soteropolitano, o Correio Mercantil,[9] onde se
coletou uma amostra de anúncios publicados entre abril e novembro de 1838.
Referem-se aqui impressões dos contemporâneos, não havendo como pesquisar
estaturas efetivamente medidas. Mas a rica bibliografia a respeito da altura de
escravos no passado permite associar altura e saúde comparativa e, portanto,
longevidade, supondo uma correlação positiva entre as duas coisas (ELTIS, 1982,
por exemplo).
O
tom dos anúncios sugere que os contemporâneos valorizavam muito a altura de
seus escravos. Além disso, a qualificação de escravos como “altos” parecia
incidir com preferência em africanos ocidentais. Foram observados 87 anúncios
em que a altura dos escravos foi comunicada. Entre os 22 homens africanos
ocidentais, apenas cinco foram descritos como baixos. De altura regular,
proporcionada ou ordinária eram dez. Altos eram os restantes 7. Quando se
tratava de africanos centro-ocidentais do sexo masculino, baixos ou “um pouco
baixos” eram 16. Ordinários, proporcionais ou regulares foram 4. Altos, apenas
3. Havia mais ocidentais altos que baixos. Quanto aos centro-ocidentais, havia
bem mais baixos do que altos. Isso quanto a homens.
No
tocante às 13 escravas vindas da África Ocidental, duas eram baixas, 8 eram de
altura considerada mediana e 3 eram altas ou muito altas. Já entre as
centro-ocidentais, uma era alta, três de altura ordinária ou regular e apenas
uma alta. Dava-se o mesmo: era maior a propensão a encontrar altura entre
aquelas que houvessem nascido na África Ocidental, ocorrendo o inverso no que
tocasse às centro-ocidentais.
A
presença e a evolução da família escrava
A importância e o reconhecimento
institucional da família escrava (ou a falta do segundo) em São Francisco do
Conde é inicialmente abordada aqui examinando o caso dos escravos mortos com,
no mínimo, 60 anos de idade, ou então o dos designados como “velhos”, “idosos”
etc., ou ainda o dos escravos falecidos dos “achaques da velhice”. Esses
números relativos a idosos, embora não devam ser confundidos com o celibato
definitivo, se parecem com ele (tabela 4).
Tabela 4
Status conjugal
ao morrer dos escravos idosos das freguesias de São Gonçalo e de Nossa Senhora
do Monte (São Francisco do Conde, 1811-1854)
São Gonçalo,
1811-1854
|
N. S. do
Monte, 1818-1854
|
|||
Homens
|
Mulheres
|
Homens
|
Mulheres
|
|
Solteiros ou
s/ inf.
|
54
|
33
|
83
|
44
|
Casados ou
viúvos
|
5
|
4
|
17
|
18
|
Total
|
59
|
37
|
100
|
62
|
% celibatários
|
91,5%
|
89,2%
|
83,0%
|
71,0%
|
Fontes: SG-1810-1849;
SG-1849-1877; MO-1821-1852; MO-1852-1862.
A
quantidade de celibatários era aflitivamente alta, fazendo pensar em grande isolamento
dos idosos. Por outro lado, o tamanho maior das escravarias de Nossa Senhora do
Monte fez sentir seus efeitos: a participação dos solteiros era um pouco menor
ali, embora ainda fosse gigantesca. Nos dois locais, a situação das mulheres
era um pouco menos violenta que a masculina.
Avalia-se
agora a evolução das chances de que africanos e crioulos adultos de qualquer
idade tivessem, ao morrer, seu estado conjugal sancionado (tabela 5). Mantenha-se
em mente que a importância dos laços sancionados decresceu durante o segundo
quarto do século XIX (SLENES, 1999; LIMA, 2016).
Tabela 5
Escravos alguma
vez casados – participação nos óbitos de escravos adultos conforme o sexo e a
procedência (São Francisco do Conde, 1811-1854)
São Gonçalo, 1811-1854
|
||||||||
Africanos
|
Crioulos
|
|||||||
Homens
|
Mulheres
|
Homens
|
Mulheres
|
|||||
n.
|
% alguma vez casados
|
n.
|
% alguma vez casadas
|
n.
|
% alguma vez casados
|
n.
|
% alguma vez casadas
|
|
1811-25
|
174
|
9,8
|
91
|
11,0
|
34
|
14,7
|
49
|
8,2
|
1826-40
|
95
|
5,3
|
39
|
5,1
|
36
|
5,6
|
29
|
3,4
|
1841-54
|
52
|
7,7
|
22
|
12,0
|
27
|
3,7
|
25
|
-
|
Total
|
321
|
8,1
|
152
|
9,9
|
97
|
8,2
|
103
|
4,9
|
Nossa Senhora do Monte, 1818-1854
|
||||||||
Africanos
|
Crioulos
|
|||||||
Homens
|
Mulheres
|
Homens
|
Mulheres
|
|||||
n.
|
% alguma vez casados
|
n.
|
% alguma vez casadas
|
n.
|
% alguma vez casados
|
n.
|
% alguma vez casadas
|
|
1818-29
|
32
|
9,4
|
10
|
10,0
|
7
|
-
|
15
|
13,3
|
1830-41
|
195
|
2,6
|
73
|
23,3
|
44
|
9,1
|
39
|
15,4
|
1842-54
|
221
|
12,2
|
94
|
24,5
|
58
|
10,3
|
61
|
6,6
|
Total
|
448
|
7,8
|
177
|
23,2
|
109
|
9,2
|
115
|
10,4
|
Fontes:
MO-1821-1852; MO-1852-1862; SG-1810-1849; SG-1849-1877.
A
participação dos alguma vez casados era muito pequena. Além disso, é quase
inacreditável que as situações respectivas de homens e mulheres não diferissem
muito entre si. As percentagens podiam ser maiores entre as africanas e
crioulas, é verdade, mas, além de nem sempre terem sido maiores, às vezes
podiam até ser muito mais diminutas. Talvez tão surpreendente seja o fato de a
situação dos crioulos não ter sido muito diferente da dos africanos (a das
crioulas era ainda pior que a das africanas).
Os
resultados globais chegaram a ficar piores, quanto ao acesso ao casamento, que
os computados por Parés para os escravos adultos inventariados de São Francisco
e Santo Amaro durante a segunda metade do século XVIII. Nessa época, pouco mais
que dez por cento daqueles homens e mulheres eram casados. Nas paróquias aqui
analisadas, e à exceção das mulheres africanas de Nossa Senhora do Monte, os
óbitos indicam um pouco menos que 10% de alguma vez casados entre os escravos
adultos. Parés também não achou as chances de legitimação das uniões de crioulos
expressivamente maiores que as de nascidos no Velho Mundo (PARÉS, 2005, p. 111).
Uma aproximação às taxas de
ilegitimidade das crianças escravas permite retomar o problema. Nesse caso,
consideram-se as informações sobre filiação presentes nos óbitos das crianças
que faleceram com menos de quinze anos de idade (tabela 6).
Tabela 6
Ilegitimidade
das crianças escravas falecidas (1811-1854)
São Gonçalo
|
N. S. do Monte
|
|||
Nas grandes escravarias
|
Nos outros plantéis
|
Nas grandes escravarias
|
Nos outros plantéis
|
|
1811-15
|
100,0
|
91,7
|
-
|
-
|
1816-20
|
80,0
|
100,0
|
100,0
|
-
|
1821-25
|
92,9
|
87,0
|
100,0
|
100,0
|
1826-30
|
73,7
|
100,0
|
83,3
|
100,0
|
1831-35
|
88,9
|
100,0
|
83,3
|
100,0
|
1836-40
|
100,0
|
100,0
|
58,8
|
90,0
|
1841-45
|
100,0
|
100,0
|
83,3
|
95,8
|
1846-50
|
100,0
|
100,0
|
76,7
|
100,0
|
1851-54
|
100,0
|
100,0
|
87,3
|
100,0
|
Fontes:
SG-1810-1849; SG-1849-1877; MO-1821-1852; MO-1852-1862.
Realmente impressiona a persistência
dos 100% de ilegitimidade. Além disso, esta última era maior nas escravarias
que pareciam ser menores, conforme indicações presentes na historiografia. Mas
as informações fornecidas por esses registros de óbito de São Gonçalo apontam
para taxas obscenamente altas em qualquer tipo de plantel. Como a família
escrava representava alguma forma de pacificação do cativeiro (FLORENTINO; GÓES,
1997), levar em conta sua clandestinidade no Recôncavo do período talvez ajude
a compreender a ebulição vigente entre os cativos baianos, ao lado das
oscilações produtivas e das candentes condições políticas da África Ocidental.
As famílias existiam, pois de outra forma não compreenderíamos a presença de
crianças. Mas elas não eram asseguradas pelo contexto.
Por
outro lado, será sempre possível apontar para relação de sentido inverso entre
restrições à família e contexto turbulento. Pode-se pensar na centralidade das
experiências obtidas nas situações de enfrentamento, de conflito desbragado. Especificamente
no tocante à Bahia e a seus escravos, João José Reis e Eduardo Silva (1989,
cap. 5) escreveram faz tempo sobre o “jogo duro do dois de julho” e sobre o
pesado impacto da guerra de Independência na vida dos escravos baianos.
Schwartz (1988), por outro lado, e tendo em vista já os anos 1790, referiu-se à
vigência na Bahia de uma “guerra para acabar com a escravidão”. Mas vinha do
século XVII, segundo Krause (2014, p. 206), a fragilidade das possibilidades de
serem sancionadas as famílias escravas, pois ele notou taxas altíssimas de
ilegitimidade nessa época. A melhor interpretação, portanto, vai da contribuição
da ausência de reconhecimento das famílias para a turbulência política, e não o
contrário.
Schwartz apontou, para os anos 1780,
taxas de ilegitimidade escrava situadas entre 66% a 73%. Schwartz (1988, p.
318), aliás, calculou a taxa da própria São Francisco quanto a 1816. Chegou aos
nossos já conhecidos 100%.
De fato, o parafuso quanto à família
escrava foi afrouxado e depois apertado durante o período estudado. Em S.
Gonçalo, a ilegitimidade cativa caiu durante os anos 1810 e 1820. Os anos 1830
fizeram tudo retornar aos 100%, tendo o movimento durado um pouco mais nas
grandes escravarias. É possível que se tratasse de alguma iniciativa
pacificadora do cativeiro, em meio à incrível turbulência que nesse mesmo
intervalo atingia os escravos do Recôncavo. A época dos contrabandos pôs uma pá
de cal nisso. Em N. S. do Monte, a redução discreta da ilegitimidade só começou
nas maiores escravarias durante os anos 1830, após a onda de revoltas na área
que abrangia São Francisco do Conde.[10] Mas
o movimento reverteu já no início dos anos 1840, caminhando-se de volta, e rapidamente,
para os velhos 100%.
É possível que tenha havido um
movimento consistente para mobilizar as virtualidades pacificadoras da família
escrava em face das turbulências da virada do século XVIII para o seguinte.
Isso se manifestou nas informações sobre a ilegitimidade das crianças cativas
mortas. Mas a reversão das sociabilidades dos anos 1830 pôs tudo a perder, e o
contexto escravista tornou a avançar ainda mais na direção da brutalidade.
Quanto à influência do tamanho das
escravarias na capacidade de legitimação das uniões, a historiografia sempre
apontou correlação positiva. Isso foi observado aqui, no entanto sem exageros.
Em São Gonçalo, a ilegitimidade nos plantéis menores alcançava absurdos 96,9%,
enquanto nos maiores ela chegava a “apenas” 90,3%.
Com suas escravarias bem maiores, os
engenhos de Nossa Senhora do Monte abrigavam mais famílias sancionadas, o que
se exprimiu em taxas de ilegitimidade um pouco menores (no total do percurso,
75,3%). Mas ainda assim a ilegitimidade era enorme. Isso combina bem com a
forte tendência ao celibato definitivo entrevista acima (os idosos que morreram
sem nunca terem se casado formalmente). De fato, o tamanho das escravarias
mostrou a outros respeitos sua capacidade de explicar alguma coisa. Nas outras
unidades de N. S. do Monte as taxas de ilegitimidade eram semelhantes às das
escravarias análogas de São Gonçalo (em N. S. do Monte, 95,8%). Assim, o timing foi um pouco diferente, mas o
sentido teve alguns parentescos com o que se viu quanto a São Gonçalo. A
ilegitimidade de 100% apareceu nos dados dos grandes plantéis até 1829,
manifestando-se naqueles das outras unidades até 1835. A partir de 1830, a taxa
começou a cair nos grandes, voltando a subir a partir de 1842. Nas outras
unidades, o 100% foi mais renitente, só tendo deixado de aparecer em 1836-1841.
Em geral, era imensa a incidência da
ilegitimidade no Recôncavo, se ela for comparada com aquela das áreas
açucareiras do Sudeste também canavieiro da mesma época. Em Rio Claro, SP, a
ilegitimidade escrava medida através dos registros de batismo ficou entre 21% e
29% nos anos 1830 e 1840. Em Limeira, que também transitou do açúcar ao café, a
legitimidade escrava ficou entre 15% e 22% na mesma época. Em Santa Bárbara,
ela passou de 22% para 25% no trânsito da década de 1830 para a subsequente,
enquanto em Capivari ela foi de 18% nos anos 1820, de meros 11% entre 1831 e
1838 e de 20% de 1839 a 1850. Em Piracicaba, a ilegitimidade passou de 14%
(anos 1830) para 21% (anos 1840). Assim, a época do tráfico ilegal, na área da
cana paulista, foi de aumento da ilegitimidade, mas sempre dentro de patamares
muito baixos (LIMA, 2016, p. 249). Isso é muito diferente do verificado por
este e outros trabalhos na área canavieira baiana, além do fato de que, dentro
de São Paulo, as áreas voltadas para o açúcar tinham taxas de ilegitimidade
escrava tremendamente menores que as observadas em locais voltados para outras
atividades, como o café, a produção de alimentos ou a criação de gado.
É preciso, no entanto, refletir mais
sobre a falta de reconhecimento das famílias. Reis (2003, p. 408), considerando
a raridade dos registros de uniões sancionadas entre escravos e libertos
africanos de Salvador, deu grande ênfase a seu desenraizamento, e assim a espécies
de desincentivos culturais, étnicos e sociais a que surgisse uma vida familiar
mais vibrante. Para tratar disso observo as alianças matrimoniais.
Uma parte ao menos dessas famílias
lograva sancionar as uniões que as constituíam. Conforme notou Parés (2005, p.
111-112), a composição étnica dessa parte institucionalizada da população era
semelhante à da população adulta em seu conjunto, de modo a não haver muitos
sinais de se ter tratado de um segmento destacado do contingente escravo,
espécie de segmento ascendente, excessivamente inserido no mundo senhorial.
Isso indica, ao mesmo tempo, que famílias escravas se ligavam a um ambiente
regrado, dotado de uma lógica própria. Aqui se argumenta que a escolha de
parceiros indicia a incidência desses regramentos, sugerindo também, à sua
maneira, que os laços não sancionados eram importantes e, de alguma forma,
regulares.
Uma maneira de avaliá-lo quanto a
escravos é observar os pais das crianças falecidas cujos óbitos contivessem os
nomes de ambos (isto é, do pai e da mãe de cada um). Só se pode realizá-lo no
tocante a Nossa Senhora do Monte, pois, diferentemente de São Gonçalo, os párocos
daquela tinham tendência mais pronunciada a qualificar os pais de crianças. O
objetivo é observar os diversos grupos étnicos e sociais a fim de verificar a
importância da endogamia (tabela 7).
Tabela 7
Sobre endogamia
escrava em N. S. do Monte, 1829-1854 – pais e mães de crianças falecidas
De cor parda
|
De cor cabra
|
De origem crioula
|
Africanos
Ocidentais
|
Centro-Ocidentais
|
|
N. de cônjuges
|
2
|
3
|
18
|
84
|
14
|
Endogâmicos
|
2
|
2
|
8
|
68
|
6
|
Fontes:
MO-1821-1852; MO-1852-1862.
As
maiores taxas de endogamia eram as dos africanos ocidentais. Pardos e cabras só
pareceram endogâmicos porque sua presença entre os passíveis de estudo foi
inteiramente negligenciável. Aqueles africanos eram, inclusive, o grupo mais
representado nessa amostra cuja montagem era muito dependente do grau a que
chegava a propensão do padre a reconhecer uma forma de identificação. Parés (2005,
p. 114) indica situação semelhante: endogamia de africanos ocidentais e
crioulos.
De certa forma, esse caráter
relativamente regrado – a endogamia – observado nas poucas uniões formalizadas
de africanos ocidentais ajuda a entrever algo de que os historiadores sempre
suspeitam: não se trata de ausência de família, mas sim de dificuldades para
assegurá-la institucionalmente. Se a vida dos africanos ocidentais tinha a
capacidade de regrar as poucas uniões formalizadas, isso fortalece muito a
suposição de que essa mesma vida também era capaz de organizar a existência da
parcela da comunidade que não tinha acesso à sanção eclesiástica. Só não pode é
passar de suposição, já que poderia perfeitamente dar-se o caso de as regras
serem outras, incluindo regulações impossíveis de capturar com os frágeis dados
disponíveis. Mas a maior probabilidade é a de que o regramento fosse o referido
– a endogamia de africanos ocidentais –, e esse tipo de condicionamento deixou
pistas (não mais que isso, lembre-se) até nos dados aproximativos utilizados.
A
endogamia dos da costa não condiz com hipóteses no sentido de que a
formalização representaria alguma espécie de prêmio aos escravos móveis, desligados
de suas comunidades de origem. Ela sussurra a respeito de solidariedades.
Considerações
finais
É difundida a expectativa de que o
tempo – o aprofundamento e a maturação das comunidades escravas – levasse a uma
condensação e a uma extensão dos laços entre cativos, o que se faria exprimir
não só no reforço dessas ligações, mas também no seu reconhecimento pelas comunidades
locais. Mas isso não se passava na parte estudada da Bahia, apesar de se tratar
de uma das primeiras regiões escravistas estabelecidas na colônia. Nem a
situação dos crioulos se destacava daquela dos africanos quanto a isso. Quase
nenhuma união era reconhecida pela sociedade englobante.
Paralelamente, entrevê-se terem tido
vigência regras comunitárias, conforme a natureza das alianças matrimoniais que
foram passíveis de reconstrução. Essa vigência sugere que a parte não
sancionada da vida familiar cativa nem era desregrada, nem governada
exclusivamente pela mobilidade ascendente.
As mudanças causadas pela primeira
proibição do tráfico de africanos foram sentidas pelos senhores de escravos.
Muitos deixaram de sê-lo, ao passo que, pelo fato de as maiores unidades não
terem deixado de crescer, ao menos em Nossa Senhora do Monte, aumentou muito a
distância social entre a elite escravista e o conjunto dos homens e mulheres livres
(sendo esse conjunto, no caso de São Francisco, em grande medida formado por
descendentes livres e forros de escravos).
Embora tenha reduzido seu ritmo ao
redor de 1840, o crescimento dos grandes plantéis resistiu até mesmo a essa
data, ao redor da qual se manifestou a tendência a que o crescimento da
agroexportação açucareira baiana passasse a carecer de mercados no médio prazo.
A clivagem de 1840 ligou-se, como em outras áreas açucareiras, à sedimentação
do lugar de Cuba nesse tipo de mercado. O fato de se ter cavado o fosso que
traria problemas de sustentação política para a escravidão e aquele de manifestar-se
a promessa de ausência de mercados no médio prazo impedem o manejo tranquilo da
noção de segunda escravidão para fazer referência à Bahia.
Esse crescimento, onde ele ocorreu,
fez-se com a preservação ou mesmo algum aumento, ao menos no início da
ilegalidade, da proporção de africanos na população escrava. Isso pode ter
resultado de aquisições realizadas ainda nos anos 1820, pois aqui foram
computadas as mortes dos escravos. É possível, mas muitas mortes de africanos
jovens conduzem a ter-se mais segurança quanto à hipótese de terem sido comuns
as aquisições da época da ilegalidade. É importante notar também que, em
algumas situações, aumentou a participação dos angolanos entre os africanos
escravizados.
A ilegalidade do tráfico africano introduziu
distúrbio na posse de escravos, excluindo dela pequenos senhores, conforme se
nota com a redução de seu número em São Gonçalo. Além disso, parece ter
aumentado a desigualdade entre eles e a distância social dos mesmos frente aos
outros homens e mulheres livres. Isso fica indicado com ainda mais força pela
comparação dos destinos dos senhores de N. S. do Monte e de São Gonçalo. A
época dos contrabandos, por fim, intensificou a circulação no Império das
práticas destrutivas e violentas que vinham também de outras fontes,
manifestando-se com força em deterioração ainda maior da vida dos escravos.
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[1] Não se considera a população
escrava de 1872 para fazer sentir o tamanho de São Francisco por ser provável
que esses contingentes já tivessem sido diminuídos pelo tráfico interno de
escravos, de modo que populações cativas dessa época não retratam o peso
específico do local. Recenseamento do
Brazil em 1872 – Bahia, p. 143ss
[2] ELTIS, David et al. The Trans-Atlantic Slave Trade Database
<http://www.slavevoyages.org/voyage/search>.
Acesso em
29/11/2017.
[3] Notas e commentarios para a
Historia da Agricultura na Bahia. Annaes
do Archivo Publico e Museu do Estado da Bahia, Salvador, v. 14, 1925, p.
30; MATTOSO, 1992, p. 462.
[4] Resumo eficiente das discussões
sobre Cuba está em TOMICH, 2011, p. 90, 106-115.
[5] Correio Mercantil, Salvador, n. 435, 03/04/1838.
[6] Açúcar bruto, para refino, e não
mais o branco, que saía já acabado de pães de açúcar; ver BARICKMAN, 2003, p. 78-79; ver
Caldeira Brant em busca de mestres jamaicanos na época da Independência (Economia açucareira do Brasil no séc. XIX.
Cartas de Felisberto Caldeira Brant Pontes, Marquês de Barbacena. Rio de
Janeiro: MIC/IAA, 1976, p. 107-110) e as recomendações em favor do bruto em O
Auxiliador da Indústria Nacional. Rio de Janeiro: Seignot-Plancher,
1833, n. 3, p. 9.
[7] SCHWARTZ, 1988; TADMAN, 2000;
considere-se igualmente a estimativa (FOGEL, 1989, p. 18) de que a maioria dos
africanos traficados foram direcionados para áreas açucareiras.
[8] 43,2 libras para 153 ocidentais
e 39,7 libras para 22 centro-ocidentais; cf. Livro de tutelas e inventários da
vila de São Francisco do Conde. Anais do
Arquivo Público da Bahia, Salvador, v. 37, p. 5-334, 1960.
[9] Ele está entre os jornais usados
por REIS, 1999.
[10] Como se recorda, Reis (2003, p.
120) advertiu que a rebelião de 1835 não chegou ao Recôncavo, da mesma forma
que Souza (1987) deixou claro ter sido a Sabinada um movimento mais urbano. Os
registros paroquiais mencionam escravos soteropolitanos retirados ali em 1822 e
1823 (MO-1821-1836, sem paginação; SG-1810-1849, paginação ilegível. Mencionam
também mulheres da elite refugiadas em São Francisco em função da Sabinada
(SG-1810-1849, fl. 233).
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